quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Culpa

Era quinta de manhã, não como as outras quintas, parecia uma quarta, na verdade. O cansaço e o sono me consumiam lentamente enquanto eu sentava em minha gélida cadeira, tomando uma caneca grande de café quente. Não havia ânimo nem para girar na cadeira, como fazia todos os dias. Quando chegada a hora, me direcionei a uma nova sala, uma nova aula de filosofia, na qual um novo velhinho contava sua história. Todo o conhecimento pós-traumático adquirido em sua vasta demonstravam raiva e um desconhecimento que criavam ódio pela única coisa que não podia compreender, e - embora não fosse admitir - vinha por uma única razão: Culpa.

Todo aquele sentimento entrava em meus ouvidos e me fazia questionar as afirmações do homem que não olhava em meus olhos. Recordo-me de Édipo, que pela culpa, furara os olhos com os colchetes de ouro das vestes de sua falecida mãe e esposa. Não pude conhecer os olhos do incestuoso Édipo, nem tampouco de qualquer um dos personagens que ali viam a desgraça vinda pelo destino, porém pude reconhecer no olhar daquele homem, assim como de qualquer outro.

Saio daquele ambiente e as nuvens negras mostram que todos abaixo dela têm culpa. E num giro vejo em todas as pessoas o mesmo olhar raso e apertado, cabeça baixa e corpo retraído, mas todas essas expressões pareciam mais intensas naquela que estava próxima a mim. Toda essa demonstração de culpa mostra-se mais próxima a cada segundo, o tempo passa e cada futura ação aproxima-se lentamente. Assim como aprendi com Verissimo, todos no escuro da noite - ou sob nuvens escuras - não são o que aparentam. Não somos os mesmos quando o sol se põe e a lua aparece. A luz indireta revela sombras que desconhecemos, por isso, pude admirar cada olhar, cada passo e cada abraço banhado pelo remorso e percebo em cada coração um aperto diferente.

Tentei deixar de lado a dor por um instante e dei lugar a fome; o vazio em mim saiu do peito e foi para o estômago. Me dirigi ao restaurante onde costumava almoçar - um ótimo restaurante, de fato - mas mesmo com a fome substituindo a tristeza, não pude comer feliz, meu paladar havia sido afetado pelo amargo do que ainda poderia acontecer. Me locomovi com uma sensação indescritivelmente ruim e que me deixava sem perspectiva e sem entender o porquê de todo o transtorno. Passei a perceber que, na verdade, não há consolo para um sentimento que vêm sem razão conhecida.

Voltei para a minha sala, girei em minha cadeira, mas nem isso me alegrava, tomei café, o mais forte e quente que podia naquele momento, mas nem isso me deixava mais animado. Me sentia culpado, mas por quê? Trabalhei um pouco, mas não pude aguentar por muito tempo: larguei tudo e saí. Fui de encontro a quem, naquele momento, me parecia mais apto a me confortar: uma grande amiga, que sempre me acompanhava naqueles meses de amizade. Por não haver um modo simples de resolver problemas que não podem ser compreendidos, tudo o que ela pode fazer foi me abraçar, o que não diminuía o remorso futuro, pelo contrário, aumentava. A culpa me machucava ao máximo, me afligia e tudo o que eu podia fazer era abraçar mais forte a minha acompanhante.

O tempo passava, mas era o que menos importava, eu só podia pensar se tudo o que eu estava sentindo ia passar em algum momento, tentava lembrar de cada atitude do meu passado para ver se nas gavetas da minha memória acharia a causa do meu pesar. Nada aparecia, mas parecia que algo iria acontecer. Abraços não eram o suficiente pra afastar os pensamentos que gritavam em minha cabeça.

Passei a olhar nos olhos da jovem próxima a mim, sua mente entrava na minha, minhas mãos afagavam seus cabelos, ainda que fosse eu quem precisava de afago, os olhos se aproximavam cada vez mais, até que em algum momento, os narizes se encostaram, passamos a sentir a velocidade da respiração um do outro, e podemos imaginar ali o que aconteceria em breve. Corações aceleraram e a negação vinha a mente de ambos. Nada podia acontecer, não era o melhor.

Conheciam-se os dois há pouquíssimo tempo, ambos andavam inconformados com suas vidas naqueles dias e decididos a apenas fazer decisões melhores que as que já tinham feito, cada um estava tentando conseguir o melhor, e sabiam que para isso, deveriam observar cada passo e cada olhar, cada ato. Sofreram demais por culpas passadas, e, agora tinham novas chances para viver de modo diferente: por que desperdiçariam uma oportunidade de mudar? Havia um único problema. Naquele momento, se identificavam com Alex, um jovem ultraviolence que apesar de sofrer as consequências por seus erros, não conseguia deixar a vontade de voltar à velha vida novamente. Cria que o mal estava dentro de cada um, e que esse mal deveria ser mantido. A culpa que Alex 'deLarge' sentia, não era suficiente para impedí-lo de cometer seus atos criminosos. Da mesma forma, as melhores perspectivas que eu e ela tínhamos para nossos futuros próximos, não eram suficientes para que impedíssemos pensamentos que nos tirassem do objetivo principal. Alex... Nós te entendemos.

Já era tarde demais, o espaço entre nós era menor que o tempo que tínhamos para raciocinar as nossas ações conseguintes. Olhos nos olhos, narizes se encostando e brincando, tudo ocorrendo na velocidade da luz, ainda que o tempo parecesse estar congelado; os dois jovens tinham plena consciência do que estava acontecendo, estava tudo tão claro, mas não conseguiam parar, e estava tão perto de acontecer... Um beijo. Aconteceu. Os corpos, vazios, de repente tornavam-se cheios... de culpa. O que aconteceu comigo? Estava tão certo de que me mudaria meu modo de agir... Me mantive são e sempre que tinha a oportunidade de voltar atrás, de me tornar o meu antigo eu, eu me esquivava, mas agora eu não pude... me deixei vencer... O que está acontecendo?

Não queria me sentir culpado, mas me sentia. Eu estava tão orgulhoso de ter a melhor conduta, fazer as melhores decisões, me orgulhava de não ser impulsivo ou irreflexivo como a maioria dos jovens. Por muito tempo me forcei a melhorar minhas atitudes e meus relacionamentos. Nunca esperei que eu pudesse ser impulsivo novamente, tinha me educado a uma vida metódica e o beijo teria acabado com tudo o que eu tinha aprendido a conhecer sobre o meu novo eu. Onde estava o eu?

Fui só um hipócrita de bosta, nada passou de um exercício de futilidade. Tentar mudar, forçar atitudes, pensamentos e moralidades, isso não funciona, apenas mata. O homem morre quando deixa de ser quem ele é, quando deixa de fazer o que lhe compraz, sem ser hedonista demais, mas as pessoas buscam sim a fuga da dor, é verdade quando dizem que as pessoas buscam o prazer antes de tudo, tudo flui através de desejos fúteis e mesquinhos, espontaneidade e romantismo passam a ser simplesmente ferramentas para a obtenção de anseios.

Passaram-se meses, e eu consegui me sentir aliviado, calmo, e por isso, apto a tomar decisões. Percebi que tudo é uma questão de amadurecimento, um amadurecimento real e sincero, amadurecimento os desejos, dos quereres, dos objetivos. Ainda não sou alguém maduro, mas pude entender qual é a minha vontade agora, e por isso, sei que cometi um erro sim, mas não pelos motivos que acreditava antes, e isso não me dá direito de sentir culpa, pois a minha falha foi não saber o que queria.